O bombeiro que derreteu voltou a casa: Rui Rosinha foi apanhado pelo
fogo de Pedrógão Grande a 17 de junho de 2017, ficou desfigurado, esteve
em coma dois meses e meio e acaba de sair do hospital. Seis meses
depois. Este é um testemunho que faz parte de um documentário que o
Expresso Diário vai publicar na íntegra esta sexta-feira e de uma grande
reportagem multimédia que vai estar disponível no site do Expresso este
sábado, num fim de semana em que se assinala meio ano desde a tragédia
de Pedrógão
http://leitor.expresso.pt/#library/expressodiario/14-12-2017/caderno-1/temas-principais/o-comovente-regresso-a-casa-do-bombeiro-rosinha
Texto Christiana Martins Foto da primeira página Ana Baião
António ainda não sabe mas o pai está em casa. À espera dele, depois de
seis meses de internamento. Rui Rosinha ainda não anda sozinho. Tem um
rosto novo, passou por 14 cirurgias, teve quatro paragens cardíacas, mas
esta quinta-feira foi para casa. E o coração batia com força à espera de
António, o filho mais velho, de 13 anos, que lhe ordenou que não
morresse. E Rui obedeceu. Não morreu e voltou para casa a tempo do
Natal. O Natal possível, mas um grande Natal.
Gonçalo Conceição não voltou com ele. O amigo Assa, como lhe chamava,
não resistiu à força do fogo de 17 de junho. Rui e Gonçalo, dois
bombeiros agarrados à vida, enquanto tudo ardia e eles também. Mas Rui
voltou para que o país não esqueça o que aconteceu naquele sábado. Daqui
para a frente, esta é a sua missão: impedir que Portugal vire a página
da tragédia de Pedrógão.
Quinta-feira, 14 de dezembro, 11h, Rui Rosinha sai de maca da Unidade de
Queimados do Hospital Universitário de Coimbra. Há seis meses, pelas
06h10 de 18 de junho, depois do acidente do veículo dos bombeiros de
Castanheira de Pera contra um carro de Lisboa, depois de ter engolido
fogo e ter visto as mãos a derreterem como cera e de dez horas a vaguear
à procura de socorro, Rui dera entrada no Hospital da Prelada do Porto.
Ia sedado, queimado. Seguiram-se dois meses e meio de coma. Muita dor e
incerteza. E quando recuperou a consciência, a primeira imagem que viu
foi do dedo em riste de António a proibi-lo de morrer. Assim que
conseguiu, perguntou por Gonçalo. E percebeu que o amigo já não estava ali.
Esta quinta-feira, na ambulância a caminho de casa, em Castanheira de
Pera, Rui Rosinha começou a chorar quando viu a imensidão de terrenos
com árvores queimadas. Tomou consciência de que enquanto estivera
fechado em quartos de hospitais a recuperar, a natureza da sua terra de
origem não tivera a mesma oportunidade. Ainda de pé, mas queimadas, as
árvores esperam pelo corte e exibem a passagem do fogo, num testemunho
de dor. Deitado na maca, a caminho de casa, Rui percebeu que aquela é
uma ferida que vai levar muito tempo a sarar.

No quartel de Castanheira de Pera, amigos e família receberam Rui
Rosinha, depois de seis meses de ausência Foto D.R.
Há uma ferida sempre pronta a reabrir. Na curva do acidente entre o
carro de Manuel Almeida e Maria Cipriana, Rui Rosinha pede para a
ambulância parar. Lá dentro, só ele, a mulher - Marina - e dois colegas
bombeiros. Abrem as portas do veículo e, no frio, Rui chora, lembra,
agradece e decide: “Não vou deixar que se esqueça o que aconteceu”, diz
ao Expresso, numa declaração prestada escassas horas depois de ter
enfrentado outra vez o local onde quase morrera.

Rui Rosinha com a mulher, Marina, no hospital Foto Ana Baião
Da EN 236-1 levaram-no para o quartel dos bombeiros de Castanheira de
Pera. Uma faixa de boas-vindas pendurada e muitos amigos e familiares
aguardavam-no. O filho mais novo. Nem o filho mais velho, na escola, nem
nenhum dos colegas que partilharam com ele aquele acidente conseguiram
lá estar. A alta inesperada pregou-lhes uma partida. Filipa está
internada, o comandante Tomé na fisioterapia, Tomé filho a trabalhar.
Gonçalo morreu-lhes.
Seis meses depois, quem consegue avança. Foram seis meses de dor e há um
silêncio que se rompe, como pode ver num documentário que o Expresso
Diário vai publicar esta sexta-feira e que foi preparado com as pessoas
que, generosamente, aceitaram falar e contar o que ainda não se contara:
a dor vista por dentro. Na intimidade das casas, das fotos privadas, das
cerimónias de família. Porque é lembrando o sofrimento que se confronta
todo um país com uma noite de morte e perda. Há 66 pessoas que faltam em
Portugal depois do incêndio de Pedrógão Grande. E vão continuar a faltar.
In Expresso 14/12/2017